Era o que faltava em 2020: a nova variante do coronavírus já está entre nós

Enquanto botamos o champanhe para gelar, loucos para cantar “adeus, ano velho”, 2020 nos lembra que até o último minuto antes da meia-noite muita coisa pode acontecer: pesquisadores do laboratório de diagnóstico Dasa acabam de anunciar que identificaram em São Paulo dois casos da B.1.1.7 do SARS-CoV 2, variação do coronavírus encontrada inicialmente no Reino Unido e que cientistas britânicos estimaram ser de 50% a 74% mais contagiosa.

A mutação, que já representa mais de 50% dos novos casos diagnosticados de covid-19 na Inglaterra, de acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), foi detectada também em outros países da Europa e começa a se espalhar pelo mundo. Apesar de mais infecciosa, ela não é mais letal que as outras cepas dominantes do vírus.

A Dasa já comunicou a descoberta da chegada da cepa B.1.1.7 no país ao Instituto Adolfo Lutz e à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Quando o Reino Unido divulgou essa novíssima variante, que acumula mais mutações do que o que se esperava pelo comportamento do vírus da covid-19 até então, os cientistas brasileiros arregaçaram as mangas sem perder tempo. Logo desconfiaram que a versão do novo coronavírus com oito mutações só na famosa proteína spike, que ele usa como chave para entrar nas nossas células, poderia ter desembarcado no Brasil. E, infelizmente, não deu outra.

Os pesquisadores analisaram 400 amostras de RT-PCR de saliva, método que identifica três alvos distintos e não apenas o gene S, da sempre citada proteína spike. E, em duas delas, encontraram a linhagem B.1.1.7. O virologista José Eduardo Levi, da Dasa, explica por que as alterações na proteína spike preocupam: “Como é usada para o vírus se ligar à célula humana, elas são capazes de torná-lo mais infeccioso”. Em outras palavras, como os cientistas britânicos que notaram pela primeira vez essas mutações desconfiam, isso faria o causador da pandemia ser transmitido com maior facilidade.

Será que pode comprometer a eficácia das vacinas? E a dos testes?

Essa era a minha dúvida, que levei a José Eduardo Levi: “Veja, no caso daquelas vacinas que focam na proteína spike, é possível que sim. E, cá entre nós, elas são a maioria”, afirma. “Provavelmente os ingleses já estão mergulhados em estudos para avaliar essa hipótese de uma redução na eficácia de alguns imunizantes”, respondeu. Atenção: isso não está confirmado. Mas, por questão de lógica, não é algo para se descartar até que estudos provem o contrário.

Levi me lembra do que acontece com a vacina da hepatite B. O vírus causador da doença no fígado também tem uma proteína que usa como chave, por coincidência conhecida por “S” —só que, no caso, “S” de superfície. E o que se observou é que alguns casos escapavam da imunização e da detecção por causa de mutações na bendita proteína S desse vírus. Pode acontecer com o vírus da covid-19 também? Até o momento, é uma incógnita.

No Brasil, por enquanto, com apenas duas amostras, fica difícil fazer estudos para confirmar qualquer coisa. Mas Levi e seus colegas se preocupam particularmente com os testes de diagnóstico. “Alguns testes de antígeno também focam exclusivamente na proteína spike do novo coronavírus”, dá o exemplo. De novo, em tese, diante da nova variante, eles podem dar um resultado falso negativo. “Existem testes de antígeno que também focam em outra proteína viral, aquela que é chamada de M. E esses talvez sejam menos afetados.”

Para investigar o que pode acontecer com os ensaios de neutralizantes

Ensaios de neutralizantes não deixam de ser testes de sorologia para flagrar anticorpos. Mas digamos que são mais específicos. “O fato de alguém ter anticorpos contra uma doença a rigor não significa que está protegido dela”, explica Levi. E, nesse caso, ele dá o exemplo do HIV: “Todo portador do vírus da Aids tem anticorpos, mas eles não adiantam para barrar o desenvolvimento da doença.”

No caso da covid-19, precisaríamos de anticorpos, digamos, especializados na proteína spike e, portanto, capazes de neutralizá-las. Não necessariamente aqueles que são flagrados em testes de sorologia comuns são desse tipo. Por exemplo, para saber se uma vacina está funcionando, não são feitos testes de quaisquer anticorpos, pois muitos deles nosso organismo pode produzir diante de um contato com o Sars-CoV 2, mas não terão o efeito desejado. “Por isso, o que buscamos nos tais ensaios neutralizantes é detectar aqueles que se ligam a um pedacinho muito específico da proteína spike.”

Mas aí é que está: justamente nessa fração da proteína, sobre a qual Levi e seus colegas há algum tempo se debruçam, a nova variante do coronavírus apresenta três daquelas oito mutações. E agora? Para começar a esboçar uma resposta e saber se algo deve mudar nesses ensaios neutralizantes ou não, voltamos à questão da quantidade de material. Lembre-se: entre nós, até o momento, são duas amostras apenas da mutação do coronavírus.

Mas, em parceria com o Instituto de Medicina Tropical da USP (Universidade de São Paulo), os cientistas da Dasa estão cultivando a nova linhagem do Sars-Cov 2, multiplicando-a em cultura para ter quantidade o suficiente de material e, desse modo, serem capazes de analisar como ficam os testes nessa nova era da pandemia, representada pela variante B.1.1.7. Ninguém pode afirmar nada por enquanto. A cientista Ester Sabino, do Instituto de Medicina Tropical, uma das maiores investigadoras do novo coronavírus no mundo, confirma que o vírus detectado é o mesmo do Reino Unido —antes que comece a confusão do é-ou-não-é. “Isso reforça a importância de manter em isolamento de dez dias qualquer pessoa que chegue da Europa”, diz ela, que acredita na probabilidade de um alto poder de transmissão da variante.

E a gente que durma com um barulho desses nesta noite de Réveillon. Ou que vá para uma festa lotada e assuma todos os riscos, se não está entendendo a última notícia de 2020.

Lúcia Helena 

uol

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