Lula se aproxima dos 100 dias de governo longe da meta de pacificar o país

Rancor e espírito revanchista têm impedido o presidente de cumprir a promessa de governar para todos os brasileiros

Por Marcela Mattos, Laryssa Borges

O presidente da República recebe todas os dias um relatório com números e análises sobre o desempenho dele e do governo nas redes sociais. O levantamento serve como bússola para orientar futuras ações, corrigir rotas, ajustar declarações, elaborar estratégias e, se necessário, lançar mão de certas táticas de combate para vencer a guerra da opinião pública. O Planalto avalia que se saiu relativamente bem nesse campo e pretende consolidar essa impressão com a divulgação do balanço que está sendo preparado sobre os 100 dias de governo. Nas últimas semanas, Lula está reunindo os ministros e alinhavando os pontos principais do pacote de realizações que será apresentado com toda a pompa. A lista inclui ações na área de direitos humanos, meio ambiente e incentivo à cultura. A vitrine será ocupada pelo Bolsa Família, o Minha Casa, Minha Vida e o Mais Médicos — programas, como se sabe, já testados nas administrações petistas do passado. Em nova embalagem, eles serão apresentados como exemplo do compromisso assumido com os setores mais carentes da população.

Embora seja um prazo extremamente pequeno para fazer qualquer avaliação minimamente definitiva, os primeiros 100 dias, olhados com lupa, revelam muito sobre os governantes e fornecem uma pista do que vem por aí. O ex-presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, celebrou a data acossado por uma inédita rejeição do eleitorado, emparedado por investigações policiais que ameaçavam alcançar um de seus filhos, confrontando o Congresso e insuflando manifestações contra o Supremo Tribunal Federal — conflitos que se prolongaram por todo o mandato, estiveram na raiz de várias crises e marcaram a passagem do ex-capitão pelo Palácio do Planalto. Um desastre anunciado. Na campanha eleitoral do ano passado, Lula se apresentou como o candidato da pacificação, reuniu em torno dele partidos de diferentes tendências ideológicas, estendeu a mão a antigos adversários e prometeu que, se eleito, governaria para todos. Nesses primeiros três meses, não surgiram sinais indicando essa direção. Muito pelo contrário.

Desde o primeiro dia, o presidente tem se esmerado em alfinetar adversários. Fala sempre em herança maldita, trata determinadas autoridades com desdém e suas aparições em público têm criado situações constrangedoras que já prejudicam sua imagem em determinadas faixas do eleitorado. O dia 22 de março é exemplar. Na véspera, Lula concedeu uma entrevista e usou um palavrão para descrever o que pensava em fazer com o senador Sergio Moro no período em que cumpria pena por corrupção em Curitiba. Seus apoiadores mais radicais vibraram com a grosseria, mas a repercussão foi ruim. Na manhã seguinte, a Polícia Federal, por coincidência, anunciou a descoberta de um plano do PCC para sequestrar Moro. Indagado a respeito, o presidente, sem qualquer prova, disse que aquilo seria “uma armação” do ex-juiz. “Foi o pior dia para o governo desde o início do mandato”, disse a VEJA um auxiliar que cuida da imagem do mandatário. Naquela quinta-feira, os relatórios de desempenho registraram índices recorde de avaliação negativa do presidente. A consultoria Quaest também mediu o baque: na semana de 20 a 24 de março menções positivas ao governo atingiram o menor patamar da série histórica, quase 30 pontos porcentuais abaixo da média registrada desde o início do governo. O desgaste foi inevitável.

PROVOCAÇÃO - Jair Bolsonaro: o ex-presidente, que voltou ao Brasil na quinta 30, foi chamado de “Bozo” e “genocida”
PROVOCAÇÃO - Jair Bolsonaro: o ex-presidente, que voltou ao Brasil na quinta 30, foi chamado de “Bozo” e “genocida” (Evaristo Sá/AFP)
Antes disso, situação parecida já havia sido enfrentada durante uma visita que o presidente fez à Argentina e ao Uruguai. Em um pronunciamento, Lula atacou de uma só vez dois ex-presidentes da República. Michel Temer foi chamado de “golpista” e Bolsonaro de “genocida” — isso depois de o petista ter anunciado a intenção de usar recursos do BNDES para financiar a construção de um gasoduto em solo argentino, prática que resultou no passado em rumorosos escândalos. Nada disso estava no script. A combinação do anúncio com as críticas aos ex-presidentes bateu o primeiro recorde de menções negativas e tirou da hibernação grupos que estavam cansados de Jair Bolsonaro, tinham severas críticas a Lula mas, apesar disso, votaram no petista em nome da promessa de pacificação. As declarações provocaram ainda estragos políticos. Ao chamar Temer de golpista, Lula atingiu indiretamente todo o MDB, partido que integrou a frente ampla na campanha e hoje faz parte da base de apoio do Planalto, inclusive ocupando três ministérios. O constrangimento foi inevitável.

SEM CONVERSA - Lula e Janja: protagonismo da primeira-dama incomoda aliados e amigos
SEM CONVERSA - Lula e Janja: protagonismo da primeira-dama incomoda aliados e amigos (Cristiano Mariz/Agência O Globo/.)
A rigor, o governo ainda não conseguiu formar uma base parlamentar para votar projetos importantes no Congresso e patina sobre questões essenciais na área econômica. Ao atacar a autonomia do Banco Central e criticar isoladamente a política de juros, Lula tem provocado apenas mais instabilidade. “Os discursos do presidente falam apenas da superfície. As correntes profundas, que são as que realmente importam, tem a ver com a economia”, ressalta o cientista político Antonio Lavareda. No balanço dos 100 dias, porém, a economia ficará em segundo plano. “Pegamos um território que sofreu um tsunami e foi preciso usar esses primeiros meses para reconstruir. A prioridade nesse início foi a recuperação da rede de proteção e dos programas sociais, mas, evidentemente, nós não vamos focar apenas nisso”, justifica o líder do governo do Senado, Jaques Wagner (PT-BA). O arcabouço fiscal e a reforma tributária, segundo ele, estarão no topo da lista de prioridades dessa segunda etapa. “Essas medidas vão assegurar o crescimento da economia com inclusão social”, garante o parlamentar. O sucesso dessa empreitada, por óbvio, depende da maneira como o presidente pretende conduzir o processo. Lula sempre foi um negociador habilidoso — está na hora de mostrar novamente essa qualidade.

PITO - Os ministros Alexandre Padilha, Paulo Pimenta e Rui Costa: “Eu vou ter de pedir autorização de vocês para falar o que penso? Era só o que faltava”
PITO - Os ministros Alexandre Padilha, Paulo Pimenta e Rui Costa: “Eu vou ter de pedir autorização de vocês para falar o que penso? Era só o que faltava” (Fabio Rodrigues-Pozzebom/Ag. Brasil; Fabio Rodrigues-Pozzebom/Ag. Brasil; Jonne Roriz/.)
Até aqui, ela anda desaparecida. Um experiente deputado do PT conta que falar com o presidente não tem sido uma tarefa fácil para ninguém. Mesmo para petistas como ele, que conhecem o mandatário há mais de três décadas, a tentativa de contato esbarra em assessores. “A agenda está sempre cheia”, diz. Os ministros mais próximos observam que Lula restringiu muito o universo de pessoas que têm acesso a ele, está mais centralizador e não admite ser contrariado. Um dos antigos colaboradores, daqueles que já fizeram parte do seu círculo mais íntimo, certo dia procurou o presidente para relatar o incômodo de correligionários e partidos aliados em relação ao protagonismo da primeira-­dama Janja da Silva. Lula não deixou sequer o interlocutor terminar a primeira frase, passou-lhe uma descompostura e advertiu que a insistência no assunto poderia resultar no fim de uma amizade de quarenta anos. Em outros tempos, a reação do presidente seria completamente diferente.

ATAQUE - Temer: “golpista” responsável pela “destruição” de programas sociais
ATAQUE - Temer: “golpista” responsável pela “destruição” de programas sociais (Cristiano Mariz/.)
Lula está com 77 anos. Concluirá o governo aos 81. Ele mesmo já admitiu que considera a hipótese de não disputar o quarto mandato por questões de saúde. Por isso, tem pressa. Em 100 dias, já conseguiu reescrever boa parte de sua biografia, manchada pela prisão e pelas acusações de corrupção das quais se livrou, redimiu companheiros que não tiveram a mesma sorte, como Dilma Rousseff, e está resgatando o elo histórico com os mais pobres. Para seguir adiante no projeto de reconstrução, também precisa acenar para os 58 milhões de brasileiros que não acreditaram nele. “O presidente deve ser capaz de se comunicar com esse outro segmento e, para isso, é muito importante que ele adote alguns princípios que ele mesmo anunciou logo depois da eleição: governar para todos, olhar para segmentos que são considerados como adversários e deixar de cavar fendas de hostilidade em relação a certos setores”, conclui José Álvaro Moisés. Rancor e espírito de revanchismo não cabem na cartilha de quem prometeu paz — e certamente não são o que o país precisa neste momento.

Publicado em VEJA de 5 de abril de 2023, edição nº 2835

Jair Bolsonaro
Luiz Inácio Lula da Silva

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